O Fenômeno El Niño e seu impacto nos centros povoados do Peru

A população peruana busca água potável após a ocorrência de mais um desastre provocado pelo El Niño.
A população peruana busca água potável após a ocorrência de mais um desastre provocado pelo El Niño.

Texto: Carlos Rondón * | Tradução: Jean Tosetto

Introdução

Com certa periodicidade o Fenômeno El Niño “visita” nosso país, gerando grandes desastres em termos ambientais, econômicos e sociais. Sem dúvida não aprendemos a lição e a cada vez somos pegos desorganizados. Os organismos de prevenção de desastres e riscos não assimilam suficientemente as nefastas experiências prévias e, que pese a conhecer-se as causas e avisos, se faz muito pouco para atuar responsavelmente e, de modo geral, se improvisam soluções.

O presente artigo trata  de explicar de modo simples qual é a natureza do Fenômeno El Niño, seus efeitos e impactos nos centros povoados do Peru e ainda mais nas diversas infraestruturas como pontes, estradas, canais de irrigação, bacias, etc.

Também se tratará da atuação de nossas instituições nacionais, regionais e locais, e o rol de profissionais envolvidos na atenção preventiva do FEN - o Fenômeno El Niño.

A Ponte Venezuela em Arequipa sofre de tempos em tempos com as inundações.
A Ponte Venezuela em Arequipa sofre de tempos em tempos com as inundações.

O Fenômeno El Niño como manifestação climática

O que é o FEN? É uma forte modificação do clima dominante em um lugar determinado.Se manifesta geralmente em forma de chuvas extraordinárias, inundações, deslizamentos de terra e outras severas mudanças climáticas que afetam os cinco continentes. A ele se agrega, devido à mudança climática global nos últimos tempos, as ocorrências de seca e modificações que surpreendem até mesmo os mais inteirados no tema. Em geral são várias as condições atmosféricas determinantes do clima, entre as quais estão: a pressão barométrica, a umidade relativa do ar, os ventos, a nebulosidade, a temperatura do ar e as precipitações. Pensando, por exemplo, nas chuvas, há em um extremo regiões áridas e semiáridas; e no outro, lugares onde o clima é úmido ou até hiper úmido.

Os indicadores do El Niño se apresentam com meses de antecedência no Peru, entre eles o ENSO - ou Índice de Oscilação do Sul, que é a diferença de pressão atmosférica entre Darwin (Austrália) e Tahiti. Outro indicador é a alteração da temperatura do mar (ATM) que, quando o fenômeno é severo, pode aumentar entre 6 °C e 10 °C acima da média. O terceiro indicador é a intensidade anormal das chuvas, mas estas ocorrem quando o Niño já está em pleno andamento.

Tarde demais: a Avenida Urrazaga em Arequipa está intransitável, devido às fortes chuvas.
Tarde demais: a Avenida Urrazaga em Arequipa está intransitável, devido às fortes chuvas.

Normalmente, em uma determinada região, há um clima dominante na maioria do tempo, que dá certas características típicas para o desenvolvimento da vida e suas atividades econômicas. Normalmente, o clima varia dentro de certos parâmetros e determina muitos aspectos cotidianos, tais como a maneira de se vestir, as características arquitetônicas das cidades, os materiais de construção, tipo de agricultura, etc. No entanto, o FEN violentamente irrompe como manifestação climática, gerando impactos enormes sobre aspectos biológicos, econômicos e sociais - embora, nestes tempos, existam melhores sistemas de comunicação por satélite, equipamentos meteorológicos e uma série de informação científica globalizada.

O aparecimento do FEN ocorre principalmente no norte do Peru. Nos últimos cinco séculos o FEN se apresentou no Peru muitas vezes, onze delas com magnitude significativa - ou "Meganiños" - gerando danos materiais, financeiros e perda de vidas humanas. Seu intervalo médio pode ser de 38 anos para a costa norte peruana. Em um contexto de grande aridez, ocorrem chuvas recorrentes cujo volume acumulado atinge, em Meganiños, valores muito elevados, como aconteceu em Tumbes, Piura, em 1983, quando choveu 3.000 mm e a média anual dos 19 anos precedentes era de 256 mm. Isto é, choveu 12 vezes a média histórica e, portanto, se poderia fazer uma análise estatística. Nestes fortes contrastes reside a característica pluvial do FEN. Outra característica é a grande duração das precipitações por vários meses, como entre dezembro de 1982 e junho de 1983 no Peru. Por conseguinte, a característica do FEN é o contraste entre o clima normal e o surgimento de um novo clima.

As inundações dos centros povoados

Até aqui temos discutido causas, características, indicadores e casualidades, mas cabe agora analisar aspectos relevantes derivados do FEN, envolvendo a participação de profissionais que, de uma forma ou outra, têm especial atuação contra este fenômeno, e nós falamos principalmente dos engenheiros e arquitetos. Um deles, por exemplo: o efeito do FEN de gerar maior dano é a inundação, que começa com chuvas fortes e esporádicas que aumentam significativamente o fluxo de rios e córregos. O aumento sem controle do desmatamento e o mau uso do solo promovem a crescente erosão das bacias. A lista prossegue com a explosão demográfica e a concentração de população. Por fim, a ocupação de áreas altamente vulneráveis, do ponto de vista estritamente humano, são fatores que giram em torno da falta de previsão e planejamento.

Em nosso país se observa com frequência como se constroem casas, urbanizações e instalações de todo tipo em áreas conflitantes com as várzeas dos rios. Os danos nas cidades se produziram pois se ocuparam para fins urbanos áreas inundáveis, devido a um crescimento caótico não planejado. Há bairros localizados em áreas da cidade sem qualquer condição natural de drenagem. A maioria das obras que foram destruídas em 1983 foram construídas no final dos anos de 1950 após o "boom" da exportação e não levaram em conta os efeitos das inundações, como as provocadas pelo Meganiño de 1925.

Nem o shopping-center, construído com um padrão de qualidade superior, escapa das consequências do Fenômeno El Niño no Peru.
Nem o shopping-center, construído com um padrão de qualidade superior, escapa das consequências do Fenômeno El Niño no Peru.

Estamos nos acostumando ao fato de que, de tempos em tempos, ocorrem chuvas normais ou extraordinárias, gerando inundações, e depois a população clama por pedidos de ajuda para ressarcir os danos. Isto ocorre porque não se tem una cultura de prevenção. Enquanto  não fizermos o uso racional do solo, que tenha em conta o comportamento fluvial e pluvial, não haverá solução economicamente viável para os problemas das inundações e deslizamentos de terra.  O excesso de água nas cidades causa a destruição de estradas, calçadas, moradias e edificações diversas, veículos, plantações, espaços públicos e tudo o mais, pois as torrentes de água não respeitam nada, com os resultados que conhecemos: consideráveis danos. Se produz a destruição de  serviços públicos (água, esgoto e energia). Como sabemos, nosso país possui um valioso patrimônio histórico e cultural de bens móveis e imóveis, muitos deles de adobe como Chán Chán, Caral e muitos mais, os quais estão expostos às intempéries, incluindo as linhas de Nazca, cujos geoglifos desprotegidos das águas a montante poderão até desaparecer, pelo qual se impõe a necessidade urgente de tomar as rédias do assunto.

Em que pese a existência de um organismo de estado, como o SINAGERD - Sistema Nacional de Gestão de Riscos e Desastres - se observa que chegou o momento dos deslizamentos de terra e outros fenômenos naturais terem uma resposta inter-institucional coerente e efetiva. Tudo isto porque há falta de previsão e planejamento. Não é possível que, nestas ocorrências, não se possa transitar pela Estrada Central, por alguns trechos afetados da Rodovia Panamericana, que em nossa cidade sofreram estragos por uma chuva regular e, do mesmo modo, poderíamos enumerar muitos casos. Não se observa a intervenção imediata, coordenada e efetiva do estado - deficiente de equipamentos logísticos e de comunicação. Enquanto isso, os viajantes e transportadores são fortemente afetados e correm graves riscos de vida ao ter que se deslocar e buscar refúgios circunstanciais.

Caminhão tenta transpor uma ponte prejudicada pela elevação do nível das águas de um rio.
Caminhão tenta transpor uma ponte prejudicada pela elevação do nível das águas de um rio.

Para que ocorram grandes desastres devem concorrer aspectos puramente naturais e também de índole humana, geralmente por negligências e falta de previsão. Isto me leva a destacar o rol dos profissionais da arquitetura e engenharia principalmente, ainda que a segurança é tarefa de todos. Expresso isto porque não devemos seguir somente lamentando as tragédias. Então é necessário que assumamos uma postura mais proativa e preventiva. Por exemplo, quando se analisam os aspectos vulneráveis de uma cidade se determinam os mapas de perigos, com os setores que podem ser mais críticos e propensos. A diretriz peruana DS 004-2011 estabelece as determinações que devem adotar os Planos de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano, em relação às áreas urbanas de alto risco não mitigável, que devem ser consideradas como zonas de regulamentação especial, o que implica planos específicos para intervir em determinados lugares a fim de diminuir os riscos para a população.

Felizmente o PDM de Arequipa, que acaba de entrar em vigência, leva em conta as considerações de riscos que lamentavelmente outras cidades não fazem, com as consequências derivadas. Este assunto considera dois aspectos: os naturais, determinados pelos indicadores e equipes de estudo; e os fatores antrópicos, que dependem da atuação das autoridades e profissionais a cargo das áreas de segurança pública. As primeiras indicam a probabilidade de ocorrência de um evento, que pela mudança climática já é quase uma constante que devemos ter em conta permanentemente. Porém, os maiores estragos se derivam da falta de previsão, pela não aplicação das normativas de ocupação do solo, a negligência dos cidadãos, os maus hábitos da população ao jogar lixo, escombros e resíduos nas margens de córregos e rios. Se agrega a isto a ineficácia de algumas autoridades e funcionários públicos, que não atuam em momento oportuno na reparação de infraestruturas locais e regionais, como defesas ribeirinhas, pontes, estradas, limpeza de leito dos canais e valas -  ou o fazem tardiamente, quase na proximidade das datas previstas, não diminuindo a periculosidade da situação.

Os trabalhos de prevenção de danos e manutenção de infraestruturas devem ser constantes.
Os trabalhos de prevenção de danos e manutenção de infraestruturas devem ser constantes.

É de se esperar que levem a cabo as recomendações ali indicadas, que as gestões municipais sejam eficientes, que não tenhamos que colocar sempre a culpa na natureza. Que possamos aprender com as experiências nefastas de 8 de fevereiro de 2013, e da última ocorrida em Arequipa, no dia 26 de fevereiro do presente ano. Neste sentido vai a  recomendação especial aos colegas que assessoram os políticos que dirigem os governos locais e regionais, supondo que devem ser especialistas em matéria de Defensa Civil, para orientá-los e atuar devidamente.

Nosso país já tem um grande déficit de infraestruturas e, quando ocorrem os desastres, retrocedemos muitíssimo com os estragos derivados. Não podemos nos dar ao luxo se seguir vendo pistas deterioradas, estradas erodidas, canais destruídos e grandes extensões de terrenos de cultivo perdidos. Ver que todo o nosso valioso patrimônio seja afetado por estes fenômenos já é ruim, mas pior é constatar que a população está exposta aos perigos de sua própria existência.

Fontes

- Prevenção de Desastres, por Engenheiro Julio Kuriiwa Horiuchi.
- O Fenômeno El Niño, por Engenheiro Arturo Rocha.
- Imagens coletadas pelo autor em páginas eletrônicas diversas.

Os arquitetos Jean Tosetto e Carlos Rondón em auditório da PUC de Campinas.
Os arquitetos Jean Tosetto e Carlos Rondón em auditório da PUC de Campinas.

* O arquiteto Carlos Rondón é representante titular do Colégio de Arquitetos do Peru na Comissão Ambiental Municipal de Arequipa. O contato com o arquiteto Jean Tosetto ocorreu durante o 3º Fórum Internacional sobre Patrimônio Histórico de Portugal e Brasil, promovido durante maio de 2016 pelo Instituto de Arquitetos do Brasil em Campinas. A versão em espanhol deste artigo foi publicada originalmente na segunda edição da revista inFoCap, em abril de 2016.


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