De modo que Oscar é Niemeyer



Os arquitetos, de maneira geral, recorrem a vários instrumentos para realizar seu ofício: mouses, teclados, monitores de 19 polegadas, programas diversos de automação do desenho, que em tempos passados - nem tão distantes assim - eram confeccionados em pranchetas com réguas, esquadros, gabaritos de mobiliário, rolos de papel vegetal, penas de nanquim, quando não lapiseiras e borrachas.

Oscar Niemeyer dispensa tudo isso. Para ele basta uma caneta hidrocor preta e um pedaço de papel manteiga, para decalcar as curvas sulcadas pela sua imaginação, cujo repertório formal se descortina pela janela de seu escritório com vista para o mar em Copacabana. Com traços econômicos e decisivos, o arquiteto do século 20 oferece o inusitado.

Niemeyer é como um compositor, cujos croquis são melodias que ele assobia num gravador de fitas cassete. É, portanto, um músico que dispensa piano e violão. Os instrumentistas que o acompanham, se encarregam de elaborar os arranjos e escrever a partitura. Deste modo, os croquis se convertem em maquetes e desenhos técnicos, que vão parar no colo dos engenheiros calculistas.

Muitas vezes ele nem se dá o trabalho de ir para o estúdio, conferir a versão final de sua canção. Existem obras projetadas pelo carioca que ele nunca visitou. " A arquitetura não é importante" - ele repete com freqüência nas suas entrevistas. O que vale para Oscar são os amigos. De fato, até os 40 anos de idade, Niemeyer era apenas uma promessa, tutelada pelo mestre Lucio Costa.

Da amizade com Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte, surge o convite para projetar o Conjunto da Pampulha, a primeira obra de grande destaque do projetista, cujo impacto nas escolas de arquitetura da época o alçaram a pioneiro do modernismo. Anos depois, JK torna-se presidente da república e Niemeyer chama Lucio Costa para executar o plano urbanístico de Brasília.

Desde então, Niemeyer é o arquiteto das cartas brancas, a quem os contratantes apenas fornecem o programa básico, sem imposições de qualquer natureza, inclusive de limitações orçamentárias. Talvez por isso, a carteira de clientes dele está repleta de governantes estaduais e federais. Além deles, somente as multinacionais e instituições com as quais o arquiteto se alinha.

Tornando-se um mito em vida, Oscar Niemeyer se dá o direito de expressar todas as suas contradições, independente da opinião alheia. Ele pode se declarar comunista e trabalhar para o Estado refém do capitalismo. Ele pode ser ateu e mesmo assim projetar a Catedral Metropolitana, fundindo o vocabulário da arquitetura num conceito estrutural único.

O gênio de Niemeyer está acima dos juízos de valores. Seus teatros não são bem resolvidos acusticamente, suas escolas são quentes e abafadas, suas residências não oferecem privacidade e suas praças são inóspitas. Mas nada disso tem peso. Sua intuição de artista supera o racionalismo pragmático, cuja beleza plástica se impõe sobre as pegadas deixadas na areia do tempo.

Entre croquis e cigarrilhas sucessivas, emulando as formas sensuais das mulheres e das montanhas de seu país, Niemeyer não cria edifícios, ele projeta ícones; como um escultor que manipula o concreto armado sem a nobreza do mármore, convertendo materiais ordinários - cimento e ferro - em símbolos que se perpetuam no imaginário popular, trazendo o ineditismo para o óbvio.

Oscar é o Pelé que não se aposentou. Niemeyer é o arquiteto dos pecados perdoados.


100 anos de Oscar Niemeyer: o vídeo que ilustra esta reflexão foi produzido por João Saboia, um amigo que ganhei compartilhando o entusiasmo por carros esportivos. Ele é jornalista, editor do site mplafer.com, e teve a oportunidade de registrar a festa do centenário na famosa Casa das Canoas, no Rio de Janeiro.

Um comentário:

  1. Bom dia amigo Jean!

    Como sempre, suas palavras de encaixaram como uma " peça de Quebra Cabeças" que finaliza a imagem. A imagem em questão é Oscar Niemeyer, que não poderia deixar de ser homenageado. Fico feliz que independente de questionar ou não a glorificação deste homem, você como arquiteto e eterno aspirante á artista foi sensacional em suas palavras. parabéns e creio que num futuro não muito longe você fará parte de um seleto grupo de " Artista escultores de concreto".

    Saudações!

    Rogério N.Arantes

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