Vinte anos aprendendo como diplomado

Um bom tempo já se passou, mas ainda há uma longa jornada pela frente. (Foto: Renata Tosetto)
Um bom tempo já se passou, mas ainda há uma longa jornada pela frente.

No final de 2012 publiquei de forma independente um livro contando a história do MP Lafer. Como as vendas iniciais superaram as expectativas, fundei a Editora Vivalendo em janeiro de 2013 para continuar escrevendo livros. Seis anos depois, recebi um e-mail do SEBRAE-SP (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo) me felicitando pelo aniversário de seis anos da minha pequena empresa.

Também recebi um e-mail do CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) me alertando que até o fim de janeiro posso pagar a anuidade devida com 10% de desconto e que, em caso de anuidades atrasadas, há um plano de quitação dos compromissos. Tive que lembrar por conta própria que fui diplomado como arquiteto em janeiro de 1999. Lá se vão vinte anos.

Esse texto poderia versar sobre a diferença de tratamento que o SEBRAE e o CAU dispensam aos seus agentes correlatos. O SEBRAE trata os empresários como empreendedores, ao passo que os arquitetos também poderiam ser vistos pelo CAU como empreendedores, mas fica a impressão de que eles apenas são pagadores de anuidades e RRTs (Registros de Responsabilidade Técnica). Porém, deixemos esta discussão para outra hora. Voltemos ao ano de 1999.

Em 1999 o CAU sequer existia. Os arquitetos eram registrados no CREA (Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura). A Internet já existia, mas ainda engatinhava pelas linhas telefônicas fixas do Brasil. Ainda vivíamos num mundo analógico.

Há duas décadas nossas contas e depósitos eram efetuados presencialmente nas agências bancárias, sempre com filas intermináveis. Como pouca gente tinha telefone celular - e nenhum deles tinha acesso à Internet - as pessoas passavam o tempo conversando umas com as outras. Lembro de ter captado um projeto espontaneamente, apenas sendo atencioso com o sujeito da frente que puxou um papo comigo.

Ainda peguei a época em que os projetos arquitetônicos - completos, e não simplificados - tinham que ser carimbados numa agência do INSS de Campinas, mediante o preenchimento manual de um formulário de matrícula da obra na Receita Federal. Só depois podíamos realizar o protocolo na Prefeitura de Paulínia.

As ARTs (Anotações de Responsabilidade Técnica do CREA) também eram preenchidas manualmente, em folhas carbonadas. Tínhamos que ir na inspetoria do CREA em Campinas, de tempos em tempos, para retirar dez formulários por vez, levando as cópias dos formulários já preenchidos.

Hoje tudo isso é feito pela Internet.

Como abri meu escritório assim que me formei, com 23 anos incompletos, passei a primeira parte da carreira trabalhando essencialmente para clientes mais velhos do que eu. Alguns deles tinham o triplo da minha idade - haviam nascido antes da Segunda Guerra Mundial. Muitos se surpreendiam com minha pouca idade na primeira reunião presencial.

Mas em geral sentia que eles respeitavam minha autoridade na área. Havia a cultura de respeito a um diploma e havia mais liberdade de decisão nas soluções de projetos. As conversas e solicitações no escritório eram mais rápidas e objetivas. Me passavam o que desejam ter numa casa - ou numa loja - e deixavam que eu tomasse as providências complementares.

Com dez anos de formado, comecei a trabalhar para mais pessoas da minha geração, que já estavam com recursos disponíveis para realizar uma construção, sempre tão custosa no Brasil. Neste processo vi a Internet me ajudar muito, com as pessoas me localizando através de meu site, sempre muito bem posicionado nas buscas do Google.

A velocidade de crescimento da Internet revolucionou os costumes e o modo como os serviços são prestados não só no Brasil, mas em todo o mundo. A avalanche de informações aparentemente gratuitas e depois o advento das redes sociais fez brotar milhões de pseudo-profissionais sem diploma.

De uma hora para outra todo mundo virou cinegrafista, jornalista, fotógrafo. A pessoa fica doente e através do Google identifica seus sintomas e já chega no consultório do médico com o diagnóstico pronto. Hipocondríacos viraram especialistas em doenças raras.

Os vídeos do YouTube despejaram no mercado de trabalho uma leva de gente entendida em marketing, mecânica de automóveis, táticas de futebol, causas trabalhistas. Logicamente os engenheiros e arquitetos também foram afetados por este fenômeno.

Hoje, aos 43 anos incompletos, já estou atendendo uma boa parte de contratantes mais novos do que eu. Alguns com menos de 30 anos. O que vou afirmar aqui não tem juízo de valor, mas é apenas uma constatação: o excesso de informação está prejudicando as pessoas.

Recebo em meu escritório cada vez mais pessoas que fizeram uma extensa pesquisa prévia sobre tudo que elas desejam considerar numa edificação. As reuniões ficaram mais longas e menos decisivas, pois antes mesmo de formular as linhas mestras de um projeto elas já querem discutir detalhes de acabamento. Demonstrando boa vontade, elas trazem para a nossa mesa centenas de imagens e textos recortados da Internet, e nem sempre trata-se de um conteúdo fundamentado. Isso sem falar nos projetos prontos, que algumas páginas tentam vender para os incautos.

Vejo que o papel do arquiteto precisa mudar para acompanhar os novos tempos. Precisamos ser muito mais didáticos com nossos clientes. Na verdade temos que ser curadores de conteúdo para filtrar todas as informações que os jovens clientes nos trazem. Alguns deles são nascidos após a queda do Muro de Berlim. Gente que não sabe o que é inflação e regime militar, e que confunde o papel de um arquiteto, visto mais como um despachante burocrático ou alguém que sabe passar um rascunho à limpo. Novamente, aqui, não faço juízo de valor, apenas uma constatação.

Poderia me estender por outros aspectos da minha profissão, pois já tenho experiência suficiente para saber que existem ciclos de alta e de baixa, não só no mercado imobiliário, como em vários aspectos da nossa vida. Não há momento bom que dure para sempre e não há momento ruim que vem para ficar. Aprendi isso na prática, não na teoria.

Dentre as várias coisas que a faculdade não ensina, é que devemos fazer leituras inteligentes de cada momento, pois há o momento para ser especialista numa área de atuação e há momento para ser generalista para colocar o pão na mesa.

Um arquiteto precisa aprender com rapidez. Temos que alimentar o espírito de curiosidade e incorporar o que observamos de bom para o nosso repertório. Se é preciso projetar uma fábrica pela primeira vez, necessitamos fazer a lição de casa e visitar tantas fábricas quanto pudermos - e o professor da faculdade não estará mais lá para falar com os gerentes e abrir portas.

Um arquiteto deve saber usar a Internet para aprender o que é útil e saber descartar o que não interessa. Mas tem muita coisa que a Internet nunca ensinará e que um arquiteto só aprenderá lendo bons livros, fazendo cursos complementares, visitando lugares reais e conversando presencialmente com antigos mestres. Só assim ele será útil para seus contratantes, ao oferecer uma experiência nova em prestação de serviços, surpreendendo e superando as expectativas de seus clientes em potencial.

Sobretudo é necessário ao arquiteto se impor como autoridade em seu ofício. Não uma autoridade escudada apenas num diploma, mas uma autoridade baseada na prática profissional, impossível de ser replicada através de e-books lidos em cinco minutos. E também não pode ser uma autoridade arrogante, mas uma autoridade respeitosa, ciente de que do outro lado da mesa também há alguém que estudou e trabalhou na sua área por longos anos, antes de decidir contratar um arquiteto.

Não poderia encerrar este texto sem registrar meu agradecimento a cada pessoa que, direta ou indiretamente, me permitiu chegar até aqui. Aprendi muito com todos, inclusive com aqueles que me fizeram críticas construtivas. Espero um dia poder devolver tudo de bom que a sociedade me deu. Vamos ver o que os próximos vinte anos nos reserva. Que sejam mais vinte anos de contínuo aprendizado.

Saúde e sucesso,
Jean Tosetto

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4 comentários:

  1. Como sempre, "cada enxadada uma minhoca". Parabéns pelo texto (vou recomendar para os arquitetos recém-formados. E parabéns pelos 20 anos de exercício profissional e pelos 6 anos de empreendedorismo editorial.

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    1. Caro Padilha, estou escrevendo textos reflexivos sobre minha carreira de diplomado a cada cinco anos. Comecei com dez anos de formado. Sinceramente não faço ideia do que terei a chance de escrever daqui a cinco anos. Está aí a beleza da nossa profissão. Abraço!

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  2. Parabéns pela provocação. Compartilho da mesma profissão e identifico situações muito proximas das citadas. Além da facilidadede acesso a uma infinidade informações, a tecnologia instantanea acabou de vez com o senso crítico. Todos tem opinião sobre tudo, o que é bom, porém não interessa a opinião diferente do outro. Em tempo: abordagem equivocada do CAU, que não exercita a empatia com os arquitetos.

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    1. Caro Fonseca, tenho certeza que isso já aconteceu com você: o cliente chaga no escritório, mostra a foto de um novo tipo de acabamento específico qualquer e pergunta sua opinião de bate pronto. É algo que você não tinha visto antes. Então ele se sente em pé de igualdade para impor decisões que, vistas com calma, podem não ser as melhores. Administrar conflitos do tipo será cada vez mais um desafio presente na carreira de um arquiteto. Quem quiser agradar os clientes a qualquer custo pagará muito caro lá na frente. Abraço!

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